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A cura do trauma (ou: quando nem tudo se trata dele)

  • Writer: Tânia Carlos
    Tânia Carlos
  • Jun 20, 2024
  • 2 min read

Outro dia, fazendo alguma pesquisa no google, me deparei com o seguinte anúncio: "cura do trauma em apenas uma sessão". O site era de uma psicóloga, inclusive com uma formação acadêmica relevante. Em 2024 ainda sou capaz de me chocar com a autorização que os charlatões, de diversas áreas, possuem.


Falemos sobre ele, o trauma. Em primeiro lugar, traumas geralmente não aparecem logo na primeira sessão de psicoterapia ou de análise, já que não são fáceis de elaborar. O paciente pode levar um tempo para tocar em assuntos tão labirínticos, por diversos motivos: existe medo desse assunto abrir um portal para um abismo e o paciente ainda não ter construído ferramentas para não sucumbir. Talvez a transferência com o profissional ainda não seja o suficiente.


O evento traumático também pode não aparecer porque foi recalcado, ou seja, rolou o famoso 'apagão'. Mesmo quando o paciente se recorda da situação que traumatizou, o registro pode estar cheio de lacunas. Algumas memórias possivelmente o despedaçariam se fossem lembradas e adissociação pode ser um mecanismo de defesa importante para a integridade psíquica de algumas pessoas.


Quando, de fato, esse analisando apagou completamente um evento devastador a ponto de não saber dele, pode ser que o conteúdo literal do acontecimento não surja em nenhum processo analítico/terapêutico. Na tentativa de desvendar os traumas de seus pacientes, Freud inicialmente tentou a hipnose, mas logo abandonou essa ideia porque compreendeu que "não era por aí". Nem sempre a memória do traumático necessita vir à tona para que seja tratada, até porque ela pode se manifestar enquanto metáfora, em sonhos ou na reatualização pela repetição quando, por exemplo, esse paciente sempre se coloca em situações que remetem a algo não falado mas presente nas marcas que traz consigo de forma cifrada, inconsciente.

Ilustração de artista desconhecido

Mas, nem sempre o trauma é, em si, algo vivenciado pelo sujeito. Ele se instala no aparelho psíquico do 'sofrente', por exemplo, ao visualizar uma imagem chocante na Internet ou por escutar algo sofrido por alguém que ele não conhece, mas que se torna insuportável de saber. Por isso, é importante que espaços que divulgam certos tipos de notícias e conteúdos avisem, antes, que esse conteúdo pode causar gatilhos em algumas pessoas. Afinal, não é preciso se deparar com a imagem de uma criança morta em uma operação policial para saber que muitas crianças morrem em chacinas nas periferias, por exemplo.


Dito isso, é necessário marcar que nem todo sofrimento emocional agudo advém de traumas ou de algum acontecimento específico, mesmo quando o paciente de fato vivenciou algum evento traumático ao longo da vida. Inclusive, na clínica contemporânea, é muito comum chegarem outros tipos de sofrimento que se sobressaem ao trauma. Muitos deles têm a ver com um não se encontrar, sensação de 'estar perdido', questões relacionais com o entorno, sofrimentos existenciais e de 'sentido da vida' .


Muitas pessoas que buscam terapia não estão gravemente adoecidas, porém desejam cuidar da subjetividade, de suas questões e forma de enxergar a vida, das decisões e indecisões, raiva e ressentimento, ou seja, o comum de ser gente e viver. E isso é tão importante quanto falar de tragédias.


E, por fim, o trauma requer tempo.

 
 
 

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